terça-feira, 2 de agosto de 2011

Diabetes: A um passo da cura?

A ciência está fechando o cerco ao distúrbio que atormenta mais de 240 milhões de pessoas mundo afora. Células-tronco, vacinas e novos medicamentos abrem perspectivas de botar um ponto final no tipo 1 da doença e aumentar o controle sobre o tipo 2, aquele que a cada dia afeta mais gente 

O alvo das promessas terapêuticas que protagonizam esta reportagem é um mal em ascensão, temido como merece ser uma das cinco maiores causas de morte no planeta. A Federação Internacional de Diabetes estima que, daqui a 20 anos, 380 milhões de pessoas ao redor do globo enfrentarão a doença, que, não à toa, é uma das mais estudadas nos meios científicos. Para conter a ameaça, os profissionais de saúde arriscam a busca de tratamentos mais potentes. E, para certos casos, esperam que essas terapias sejam mesmo definitivas. São duas as versões da doença e, tudo leva a crer, o caminho da cura se abriu ao tipo 1, que, apesar de menos frequente, não pode ser prevenido e, geralmente, se mostra mais avassalador. 

Na corrida atrás de uma solução efetiva para essa doença autoimune, que inevitavelmente exige a reposição de insulina todo santo dia, o Brasil está à frente. Um time da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, no interior do estado, conseguiu a proeza de reverter o diabete tipo 1 em seres humanos. É um feito único no mundo e isso lhes valeu o primeiríssimo lugar na categoria Saúde e Prevenção do III Prêmio SAÚDE!, uma iniciativa da Editora Abril.

Cautelosos, os vencedores evitam o termo “cura”, mas o fato é que descobriram uma maneira de brecar o ataque em massa à fábrica de insulina, o pâncreas. Como? “Primeiro, demos um jeito de arrasar o sistema imune dos voluntários, mas sem colocá-los em risco de vida”, conta o endocrinologista Carlos Eduardo Couri, um dos autores. “Em seguida, usamos células-tronco — no caso, extraídas dos próprios pacientes — para repovoar as forças de defesa”, continua. E esse exército novo em folha não encostou nem sequer um dedo no pâncreas. Trégua ou paz definitiva? Tomara que seja a segunda opção (vire a página e entenda todo o procedimento).

“É um trabalho inédito mundialmente, realizado com pessoas de 12 a 35 anos com menos de seis semanas de diagnóstico da doença”, conta Couri. O tratamento tem mesmo de ser aplicado enquanto a doença é ainda recente. Quando o mal é mais antigo, as células produtoras de insulina já estão à beira da extinção e, portanto, de nada adiantará barrar apenas a agressão ao pâncreas — as fabriquetas de hormônio que eventualmente tiverem sobrado talvez não sejam suficientes para suprir o organismo.

Os resultados da experiência realizada em Ribeirão Preto são extremamente animadores. “Dos 23 indivíduos que se submeteram à terapia, 14 estão livres de insulina há mais de quatro anos”, revela Couri. Imagine a felicidade de um diabético ao se dar conta de que não precisa mais daquelas picadas diárias. “Esses indivíduos tratados estão sob controle, mas, ainda assim, devem manter uma alimentação completamente equilibrada e praticar atividade física”, lembra o cientista. “É um tratamento bem factível em escala maior. E talvez valha a pena, apesar de ainda não sabermos se o diabete voltará no longo prazo”, comenta o endocrinologista José Marcondes, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

O trabalho de Ribeirão Preto vem sendo bem acolhido pela comunidade médica, mas os próprios pesquisadores reconhecem os desafios que precisam ser vencidos para a técnica ultrapassar o caráter experimental. “O tratamento ainda é caro, requer uma equipe muito bem treinada. Por isso, ainda não pode ser feito em qualquer lugar”, diz Couri. Além disso, tem lá os seus riscos. “No período de imunidade baixa, logo que destruímos o sistema de defesa original, o paciente pode adquirir infecções graves. Daí a necessidade de muitas doses de antibiótico”, explica. “Por sorte, até o momento só dois indivíduos pegaram infecções assim e nenhum deles morreu.” Ou seja, aos poucos a terapia está provando sua segurança.

está provando sua segurança. Na mesma marcha, lenta e segura, pesquisadores da Universidade Linkoping, na Suécia, bolaram outra estratégia para frear o diabete tipo 1. Eles desenvolveram uma vacina, feita com uma enzima chamada GAD, que mora dentro das células beta. Quando essas células são agredidas e se rompem, liberam a tal substância, o que acaba atraindo mais unidades de defesa para dar pancada no pâncreas. “Ou seja, a GAD ajuda a amplificar o ataque”, resume Freddy Eliaschewitz, que também é coordenador médico do Núcleo de Terapia Celular e Molecular da USP. O estudo sueco, realizado com 70 pessoas de 10 a 18 anos, mostra que a vacina reduz a agressão ao pâncreas porque ensina o sistema imune a parar de caçar o GAD. A doença então evolui mais devagar — mas evolui. Os voluntários imunizados ainda necessitam de aplicações diárias de insulina para controlar o mal, só que em doses menores. “O problema dessa terapia é que ela não age sobre a causa da doença, apenas não deixa que piore. Os pacientes continuam a ser diabéticos”, diz Eliaschewitz.

Para o médico, outra esperança para silenciar de vez o tipo 1 está nos anticorpos monoclonais — já usados contra o câncer e a artrite reumatóide. No caso do diabete, essas drogas de última geração, ainda sob estudo, seriam capazes de apontar sua mira precisa contra os linfócitos T que ameaçariam o pâncreas. “Bloqueados, eles não conseguiriam atacar a central de produção de insulina”, explica Eliaschewitz 
O mais provável, porém, é que o pote de ouro, ou melhor, a cura do diabete, esteja de fato nas células-tronco — especificamente nas mesenquimais, retiradas da medula óssea, capazes de desempenhar diversas funções no organismo. Cientistas de todo o planeta — e o grupo de Ribeirão Preto marca presença novamente — já começam a testá-las com o objetivo de aplacar a doença. A idéia agora é induzir esse tipo de célula-tronco a cumprir outra missão no pâncreas. “Ela regeneraria as células beta pancreáticas e, de quebra, recriaria o sistema imune”, anuncia Couri. Imagine só: um pâncreas a todo vapor, livre de agressões e com insulina garantida a vida inteira. A ciência, devagar e sempre, promete que um dia chegará lá.

A ciência também planeja aprisionar o diabete tipo 2. Ainda mais porque esse vilão se dissemina velozmente pelo planeta. Se de um lado o mal pode ser evitado com um estilo de vida que combine dieta equilibrada e exercícios físicos, de outro as chances de cura parecem estar mais distantes do que a do tipo 1 — algo que pouca gente imagina. Até o momento, quando se fala em remissão do tipo 2 em seres humanos, o assunto não escapa da mesa de cirurgia e vem cercado de polêmica.

Seriam dois os caminhos para eliminar esse diabete via bisturi. O primeiro é a cirurgia bariátrica, que, ao promover a redução do estômago, dá um basta aos quilos a mais. “Ela reverte o tipo 2 por causa da própria perda de peso”, diz a endocrinologista Márcia Nery, chefe da Unidade de Diabetes do Hospital das Clínicas de São Paulo. Então só os rechonchudos tirariam proveito dela? “O procedimento nos mesmos moldes, só que para não obesos, tem mostrado algum sucesso, mas ainda é experimental”, responde a médica. A outra opção cirúrgica é uma controversa operação no intestino, que alteraria a síntese do GLP1, hormônio que instiga a produção de insulina. Não se tem clareza de que funcione pra valer — e os riscos são elevados.

No terreno dos medicamentos, os estudiosos pensam em novas armas para melhorar a ação da insulina. É o caso dos inibidores de DPP4, uma enzima que diminui a sobrevida do GLP1 e, assim, atrapalha o papel da insulina. O laboratório alemão Boehringer Ingelheim prepara para 2010 uma droga dessa família. “Ela é mais precisa e 100 vezes mais potente do que os outros inibidores”, conta Marcus Magliano, gerente de pesquisas no Brasil. O mesmo laboratório investe também em um remédio dotado de outra estratégia contra o mal: eliminar o excesso de açúcar do sangue pela urina. “Embora seus estudos sejam mais precoces, ele pode inaugurar uma nova classe terapêutica”, diz Sonia Dainesi, diretora médica da Boehringer.

Enquanto todo esse arsenal não está ao dispor dos diabéticos, eles devem continuar de olho na dosagem da glicose, tomar seus medicamentos (se necessário, aplicar a insulina) e zelar por um menu balanceado e pela prática de atividade física. “O problema do diabete é a necessidade constante de controle. As complicações não são causadas pela doença em si, mas porque ela está desgovernada”, diz Marcos Tambascia, professor da Unicamp. Seja tipo 1, seja tipo 2, o diabético tem que fazer sua parte enquanto aguarda a cura.
Entenda o tipo 1
Entre 5 e 10% dos pacientes, a doença apareceu assim: as defesas, em um ataque contra o próprio corpo, passaram a destruir o pâncreas ainda na infância ou, no máximo, na juventude. “O sistema imunológico deixa de reconhecer as células beta, que produzem a insulina na glândula, e passa a enviar anticorpos para eliminá-las”, descreve o endocrinologista Freddy Eliaschewitz, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “No diabete tipo 1, cerca de 80% dessas unidades ficam destruídas”, calcula o médico José Marcondes. Ainda não se sabe muito bem o que desencadeia a confusão. “Pode haver desde uma predisposição genética até um fator ambiental, como um vírus, capaz de modificar a célula beta, que então se tornaria irreconhecível ao organismo”, diz Eliaschewitz.

Entenda o tipo 2
Essa versão da doença se encontra em franca expansão. Hoje representa 90% dos casos, mas sua participação poderá aumentar. E pior: está dando as caras cada vez mais cedo. “Ela tem aumentado entre os jovens porque está relacionada ao sedentarismo e à obesidade”, afirma a endocrinologista Márcia Nery. A encrenca por aqui diz respeito à própria insulina, que não consegue desempenhar a sua missão: permitir que o açúcar entre nas nossas células. “O hormônio então não age direito sobre os músculos”, exemplifica José Marcondes. Para aumentar sua eficácia, o paciente precisa tomar remédios. Ou, como fica sobrando glicose na circulação, o pâncreas tem de suar para produzir mais e mais insulina, desgastando-se cada vez mais, e produzindo uma quantidade sempre maior de hormônio defeituoso e ineficiente. “Passados dez ou 20 anos, de tão sobrecarregada, a glândula tende a falir”, diz Marcondes. E, com isso, o diabético terá de apelar para o hormônio sintético, como se tivesse o tipo 1 do problema.


Uma nova insulina 

Quem padece do diabete tipo 1 ou apresenta o tipo 2 há mais de 20 anos precisa aplicar a versão sintética do hormônio diariamente. “O paciente tem de usar dois tipos de insulina: uma de ação prolongada e outra de ação rápida, injetada imediatamente antes da refeição”, diz o endocrinologista Marcos Tambascia, da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Determinar a dose certa costuma ser um tremendo desafio — sobretudo para crianças, idosos e portadores de qualquer doença. O risco é faltar apetite e a pessoa tomar insulina demais antes de comer. Daí, lá vem a hipoglicemia. Para contornar situações do gênero, surge uma novidade no mercado. “Trata-se de uma molécula chamada glulisina, que, dentro do corpo, faz as vezes de insulina e pode ser aplicada depois da refeição”, explica Tambascia.

Entenda por que a terapia desenvolvida por cientistas brasileiros é capaz de banir o diabete tipo 1

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por Diogo Sponchiato I infográfico Letícia Raposo e Érika Onodera

1 ) Na doença, o próprio sistema imunológico se volta contra as células beta, unidades do pâncreas que fabricam a insulina. As forças de defesa enviam anticorpos para exterminá-las.

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2 ) Para acabar com o ataque, os médicos submetem o paciente a sessões de quimioterapia. O objetivo é fazer as células-tronco hematopoéticas — aquelas que, mais tarde, formariam o arsenal imunológico — se desgrudarem do interior dos ossos.

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3 ) Ao dar adeus à medula óssea, essas células caem na circulação, onde ficam soltas. Os cientistas, então, aproveitam para extraí-las do sangue e, em seguida, guardá-las no laboratório. Todo o processo dura uns três dias e o diabético volta para casa.

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4 ) Passado um tempo, o paciente é internado de novo — só que agora são 30 dias de hospital para receber sessões pesadas de quimioterapia, que aniquilarão de vez o seu sistema imune. Sem defesas, ele permanece sob vigilância total, tomando, por exemplo, antibióticos.

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5 ) No sexto dia de internação, os médicos reintroduzem as células-tronco. Aos poucos, elas formam as novas unidades de defesa do organismo. Mas, por serem desprovidas de memória, não agridem as células beta. Em trégua, elas produzem insulina em paz.

Fonte: Carlos Eduardo Couri, endocrinologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto

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